30/04/2009
2ª BIENAL DO LIVRO
Bariani Ortencio, um paulistinha genuinamente goiano
Com este texto, Vera Tietzmann, da UFG, iniciou a mesa-redonda sobre Bariani Ortencio e sua obra.
Possivelmente uma das características mais marcantes de Goiás e de sua gente seja a hospitalidade. Herança, talvez, dos bandeirantes que por aqui passaram e foram se deixando ficar nos povoados que fundavam,
Goiás está sempre aberto a migrantes de todas as origens, de dentro e de fora do Brasil. Enquanto em outros quadrantes as portas se fecham, desconfiadas, aos recém-chegados, aqui, ao contrário, elas se abrem. Em lugar do preconceito frio, há o acolhimento cálido. Falo por mim, que recebi esse tratamento quando vim para cá há mais de trinta anos. E vejo esse comportamento repetir-se com meus novos colegas de trabalho, que vêm de outros estados para aqui viver. Esse clima fraterno permite que o chegante crie raízes, que se reconheça goiano. Isso aconteceu comigo e também, muito antes, aconteceu com o nosso homenageado desta Bienal do Livro, o escritor Bariani Ortencio.
Filho de Antônio Ortencio, “um homem neurastênico, nervoso, o mais brabo”, e de Josefina Bariani, Waldomiro Bariani Ortencio é paulista de Igarapava e reside em Goiânia desde 1938. Seu registro de nascimento traz a data de 24 de outubro, mas na verdade, nesse dia nasceu seu pai, Bariani é de 24 de julho. No equívoco ocorrido no interior de São Paulo, em 1923, talvez já houvesse uma predestinação, pois dez anos mais tarde, em 24 de outubro, seria fundada Goiânia, cidade a que viria se ligar definitiva e profundamente a vida de Bariani Ortencio.
Do convívio com o pai, caçador experiente, veio-lhe o espírito aventureiro, o gosto pela natureza e o olhar atento. Na dedicatória que lhe faz em Sertão sem fim, seu terceiro livro de contos, ele relata:
Desde os oito anos de idade andava engastalhado nas suas pernas; agachado eu, ele com a espingarda na mira, derrubando pombas-do-bando das grimpas das árvores e empacotando inhambus na corrida, entre as socas de arroz e as canas de milho. Eu, o cão perdigueiro que corria a buscar a caça abatida.
No final da década de trinta, acossada por uma revolução, a família toda emigra de São Paulo para Goiânia, a nova capital. Nas disputas de futebol que jogava com os amigos veio o apelido de Paulistinha com que ficou conhecido à época e que depois veio a batizar sua rede de lojas – as tradicionais casas de som “Paulistinha”. Ao que parece, só nelas a origem desse escritor tão goiano ainda é lembrada.
O “espírito aventureiro, de vasculhar sertão” que diz ter herdado do pai anima a sua obra literária, onde o cenário das fazendas e pequenos povoados (“corrutelas”, como se diz em Goiás) é constante. As memórias da infância às margens do Rio Grande ganham os tons do cerrado goiano, terra e chão de Bariani desde a adolescência. Sem ser excessiva, a marca de goianidade de sua obra é autêntica, incontestável. Nas suas narrativas vemos desfilar os tipos mais característicos do mundo sertanejo: o coronel, o jagunço, o delegado, o vigário, o benzedor de cobras, o garimpeiro, o matador de aluguel, o liquidante. Nesse mundo arcaico que retrata, as relações de poder são muito nítidas e a hierarquia, rígida. De um lado, estão os poderosos que mandam; de outro, o contingente maior dos que a eles se sujeitam. Nos vilarejos, a chegada de um forasteiro pode desequilibrar essas relações, promovendo uma reviravolta nas posições de mando. Isso se observa, por exemplo, no conto “Rivalidade”, de Vão dos Angicos, uma história com sabor de anedota.
Gilberto Mendonça Teles, no seu clássico estudo de 1969, O conto brasileiro em
Goiás, recentemente republicado, ressalta o forte teor regional que pontua a ficção curta produzida até então no estado e propõe uma divisão dessas obras em duas vertentes principais: a linha primitivista, cujos textos, de cunho mais popular, têm seu peso no enredo, enfatizando o anedótico e o pitoresco, e a linha intelectualista, com narrativas mais elaboradas em sua construção e linguagem, apresentando maior densidade dramática. Conforme observou, nas primeiras, em geral, ocorrem finais cômicos, enquanto nas outras, trágicos. O Padre Zeferino de Abreu, pioneiro do conto goiano, representa o primeiro grupo e Hugo de Carvalho Ramos, o segundo.
Bariani Ortencio, sem privilegiar a primeira trilha, como fez Carmo Bernardes, nem definir-se pela segunda, como fez Bernardo Élis, permaneceu na confluência das duas vertentes, registrando o mundo sertanejo em extinção ora pelo viés trágico, ora pelo cômico, permitindo-se nuanças intermediárias onde prevalece a ironia.
Com freqüência o autor se vale das fontes populares, registrando histórias que circulam como anedotas, infalivelmente com desfechos inesperados que provocam o riso. São contos menores, no conjunto de sua obra, leves, pouco mais do que anedotas, com personagens apenas delineados, ao estilo de um Pedro
Gomes.
Há narrativas, porém, em que o autor desliza da facilidade do enredo para a complexidade do personagem, fazendo-o crescer e adensar-se, envolvendo emocionalmente o leitor. O recurso à surpresa final, marca típica dos “causos”, em geral é mantido. Pelo artifício, contudo, de fazer o leitor inteirar-se da trama pela perspectiva do protagonista, compartilhando com ele anseios, dúvidas, temores e sobressaltos, o texto ganha em coerência e verossimilhança. Temístocles Linhares, discorrendo sobre os contos deste autor goiano, acertadamente observa:
Seu grande mérito foi ter sabido evitar a frieza do conto popular [...] O autor soube incorporar a sua matéria a um conjunto coerente, fazendo-o gravitar em torno de uma personagem central.
“Iniciação”, de Sertão – o rio e a terra, transcorre no meio rural e mostra um menino amadurecendo às pressas, antes do tempo, pressionado a tornar-se adulto pela morte do pai. Comovente sem ser piegas, a narrativa feita em terceira pessoa, mas sob a perspectiva do menino que não se permite sentimentalismos, comove o leitor. Aliás, a filtragem do enredo pela perspectiva infantil é inaugurada no conto goiano simultaneamente, em 1959, por este livro de Bariani Ortencio e por Cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga. “O liquidante”, de O que foi pelo sertão, livro de estréia de Bariani Ortencio, é outro bom exemplo dessa cumplicidade entre protagonista e leitor, que, neste caso, fica reforçada pela escolha do foco narrativo em primeira pessoa.
Já “O encontro”, de Sertão – o rio e a terra, apesar de ser um conto singelo, exemplifica duas características muito presentes nas demais ficções do autor. A primeira é a narrativa centrar-se sobre as reações do protagonista; a segunda é o recurso ao anticlímax, frustrando a expectativa do leitor e surpreendendo-o com um desfecho totalmente inesperado. Esse artifício se repete, mais uma vez, em “A carta”, de Meu tio-avô e o diabo, obra de 1993 que assinala a retomada dos temas regionais pelo autor, depois de breve incursão por outras modalidades de ficção.
“A busca”, texto de Sertão sem fim, obra de 1965, poderia, por sua extensão, ser classificado como novela (a narrativa se estende por 65 páginas). Sem favor nenhum, pode-se dizer que constitui a peça mais bem acabada no conjunto da obra de Bariani Ortencio, um texto irretocável. Segundo palavras do crítico Wilson Martins, essa narrativa “poderia figurar em qualquer severa antologia da ficção brasileira contemporânea”. Vale a pena fazer um breve comentário sobre ela.
O enredo é relativamente trivial no mundo sertanejo: uma vingança a soldo, a partir de um motivo de pouca monta. O mandante é um poderoso local, um “coronel”, o executor, um jagunço matador por profissão e a vítima, um empedernido bandido. Aparentemente, seria caso de se resolver em duas páginas, mas Bariani Ortencio estende a trama por dezenas de páginas, sem perder a atenção do leitor e sem afrouxar a tens